quinta-feira, 7 de julho de 2011

O começo do filosofar

http://joaofelix.blogspot.com/2009/11/
arte-de-questionar-ciencia-de-filosofar.html


O meu colega Adriano Naves de Brito afirma que não precisa aprender Filosofia cronologicamente para aprendermos a filosofar. Concordo plenamente com essa afirmação. Isso significa que podemos aprender Filosofia por meio da leitura de qualquer texto filosófico. Eu acrescento a essa afirmação esta outra: esperar ler todos os filósofos, cronologicamente ou não, tende mais a impedir do que a estimular o trabalho filosófico. 

A questão que cada um de nós deve pôr para si mesmo é esta: eu quero saber ou eu quero fazer Filosofia? Afirmo que não há melhor forma de saber que por meio do fazer ou, então, observando como se faz. A grande oportunidade perdida na academia é justamente esta: por pretender “repassar” conhecimentos filosóficos aos alunos, acaba-se por afastá-los da possibilidade de fazer. Por quê? Primeiro, porque não se repassam, em Filosofia, conhecimentos. No máximo se repassam informações. Segundo, explicam essas informações a gênese dos problemas que motivaram as diversas teorias filosóficas? Na maioria dos casos, não. Entre outras razões, pela crença generalizada de que há “questões essências” que sempre são tratadas pelos filósofos, assim como pelo preconceito de que haveria certas noções próprias para tratá-las: as da Filosofia tradicional e, de novo, as da Filosofia grega. E se, por ventura, o aluno, o que é muito provável, não se interessa pela problemática grega e nem está disposto a aprender grego? Vai abandonar seu desejo de ser filósofo por causa disso? Muitos, lamentavelmente, o fazem.


Ora, se os alunos vissem o seu professor filosofando seria muito diferente. Mas, como filosofando? Muito simples: avaliando as soluções dos problemas diferentes que enfrentaram os diversos filósofos, avaliando e discutindo com os textos como quem discute com um interlocutor qualquer; numa palavra: tornando o texto um interlocutor. Discutindo duas propostas, propondo objeções e imaginando possíveis réplicas. (Imaginado possíveis respostas do filósofo se o filósofo estiver morto. Mas há filósofos que estão vivos, e são a maioria, e com eles podemos discutir.) Fazendo, então, o que os próprios filósofos gregos fizeram e cujo exemplo não se segue: argumentando e levantando hipóteses. Ou, então, mostrando como os filósofos da nossa época reagiram às teses e argumentos apresentados por este ou aquele filósofo. 

Ora, lamentavelmente, não é isso que se faz. Há um pavor generalizado de dizer que Platão se equivocou aqui, que Aristóteles errou acolá etc. E esse pavor generalizado se deve a que eles próprios, os professores, não foram preparados por seus mestres nem para discutir os textos, nem para polemizar com seus professores, e sim para decorar complicadíssimos métodos de “leitura” de textos, métodos “hermenêuticos”, fichamentos complicados, aprendendo como se cita, com se “trabalha interpretativamente” um texto, como se faz um leitura “estrutural” etc. Mas ninguém parece importar-se com o único “método” que existe na prática filosófica, que é questionar: 
“Concordo com isto? 
Sim? 
Não? 
Por quê?” 

O simples método das quatro perguntas óbvias que alguém faz quando escuta outra pessoa afirmando isto ou aquilo. Gostaria que os alunos perguntassem a seus professores (quando estes entram no assunto “método de leitura”): “Está seguro que Platão fez fichamento? Sabia Aristóteles o que era a hermenêutica? Forneceu Kant referências bibliográficas quando escreveu a Crítica? Fez Heidegger uma leitura estruturalista à francesa dos textos que leu?”
E se o aluno não vai com a cara de tais métodos? Se eles simplesmente o deixam aborrecido, que deve fazer? 
Abandonar a carreira? O aluno não tem o direito de fazer as coisas do seu jeito?
E esta pergunta é mais grave ainda: “E se nenhum dos problemas filosóficos da tradição o interessam, ele deve desistir de querer filosofar?” É preciso que para filosofar alguém tenha necessariamente que se interessar por pelo menos um dos assuntos da Filosofia desde os gregos até hoje? A simples verdade é que não, que para fazer Filosofia o aluno não tem que se interessar necessariamente por nada que tenha sido dito ou feito nem concordar com a maneira como foi feito. É por isso que a tese de Heidegger do estatuto privilegiado do grego clássico é teoricamente infundada e historicamente falsa. A verdade é que há filósofos que jamais se ocuparam com essências metafísicas, com as qualidades do grego antigo, com os problemas tratados pela tradição, pela filologia, pelo próprio Heidegger e, mesmo assim, foram e são filósofos. Como explicar isso em uma perspectiva que privilegia, como única, esta ou aquela posição filosófica? Este ou aquele linguajar filosófico?Tendências do Ensino de Filosofia: Panorama Histórico da Práxis Filosófica Para (não) Finalizar

Só faz Filosofia quem tem algum problema filosófico ou alguma solução diferente para um problema conhecido. Só faz Filosofia quem, quando lê um filósofo, entra no mérito da questão, ou seja, que se pergunta a si mesmo: “Concordo ou não com esta afirmação?” Esse é o primeiro passo. O momento em que encontra sua resposta, isto é, quando, por exemplo, discorda e diz por que, é esse instante em que passa de mero leitor a filósofo. Esse passo não ocorre – nem deve ocorrer – na mesma hora. Achar soluções leva tempo, às vezes anos. Mais tarde ou mais cedo, porém, as encontramos. Mas a atitude, a teimosia, a coragem e até o drama de procurar o que não se tem certeza de encontrar é que define o filósofo. 

Concordar, é claro, acaba sendo mais fácil e é muito cômodo. Mas se eu concordo porque acompanho a argumentação do filósofo e fico convencido por ela, neste caso continuo sendo um leitor. Entender Filosofia não é um grande mérito – a não ser a de contados filósofos. Não é também fazer Filosofia. Eu entendo a teoria da relatividade. Não vejo mérito nisso. E tampouco isso me faz físico. Alguém poderia explicá-la para mim, e isso não me tornaria físico. Concordar com uma teoria é, para quem quer fazer Filosofia, ruim, pois só filosofamos quando propomos teses diferentes das já propostas, e só o fazemos quando discordamos, quando nos incomoda profundamente esta ou aquela afirmação. Por exemplo, se concordo com a explicação aristotélica da desigualdade social segundo a qual uns nascem para mandar e outros para obedecer, nada acontece de importante dentro de mim. Tudo, na minha cabeça, fica como está. Mas se a tese me revolta, se me produz alguma reação mesmo que visceral, é aí que vou tentar fundamentar minha posição. Aí serei filósofo. Todavia, poderei estar equivocado e Aristóteles certo, e, mesmo assim, farei Filosofia. Isto até surpreenderá, mas eu posso estar rotundamente enganado e, ainda assim, ser filósofo.

Gostaria que o leitor pensasse em quanto seria preciso (quantos volumes, capítulos ou páginas) para provar que a Filosofia não tem qualquer acesso privilegiado à verdade. É generalizada a ideia de que há uma íntima relação entre uma e outra, ainda mais, de que a Filosofia é a ciência da verdade por excelência. Mas não é preciso nem de vários volumes, nem de capítulos inteiros, nem de muitas páginas para provar que essa tese é falsa. Com efeito, não precisamos nem de uma página inteira, basta uma linha só: há antagonismos filosóficos, logo há Filosofias falsas.

A prova é muito simples: se há antagonismos filosóficos, então há posições filosóficas que afirmam teses contraditórias. 
Ora, as duas não podem ser verdadeiras, uma ou outra é falsa (ou mesmo as duas). Vejamos um exemplo: o dogmatismo e o agnosticismo filosófico. Enquanto um afirma que é possível conhecer a essência da realidade, ou outro o nega. Os dois não podem estar certos, o que significa que há pelo menos uma teoria filosófica falsa. Se a teoria falsa, no entanto, continua sendo considerada filosófica, então há teorias que, mesmo sendo falsas, são filosóficas. E este mesmo argumento o fazemos extensivo a todas as diferenças filosóficas: idealismo e materialismo, em metafísica; racionalismo e empirismo, em epistemologia; formalismo, intuicionismo ou utilitarismo, em ética e assim por diante; a lista é interminável. Logo, não são só dois os casos de antagonismo filosóficos, são inúmeros, o que prova que há inúmeras posições filosóficas que devem se falsas, já que nem todas podem ser verdadeiras. Isso demonstra que tal acesso privilegiado é outro dos 
mitos que sobre a Filosofia se tecem constantemente e que deve ser denunciado. 

Em resumo, e mais uma vez, a Filosofia nem consiste em ter um acesso privilegiado à verdade, nem precisa de uma língua privilegiada para fazê-lo – seja viva ou esteja morta. Há outras condições para fazermos filosofia: ter espírito crítico, imaginação e poder argumentativo. Espírito crítico para não aceitar de mãos beijadas tudo o que nos é dito ou tudo que lemos; imaginação para estar em condições de achar soluções e saídas do labirinto em que nos encontramos e poder argumentativo para fundamentar racionalmente nossas intuições. Em outras palavras, comportamo-nos na Filosofia como o fazemos como seres normais: avaliar o que escutamos ou vemos ou lemos, pensar se concordamos, avaliar, refletir e decidir as coisas por nós mesmos, como pessoas adultas que não precisam ser conduzidas pelas mãos de outros adultos.

Podemos, portanto, estar em condições de filosofar mesmo antes de saber que o fazemos. 
Quando tinha uns 14 anos comecei a pensar na existência de Deus. Estava uma tarde a considerar este e aquele atributo de Deus, a existência do mal etc. Cheguei a uma determinada conclusão e, anos depois, quando estudava Filosofia, um professor nos passou umas páginas escritas por Cícero sobre o mesmo assunto. Para minha grande surpresa, o argumento que ele tecia era exatamente o mesmo que eu havia construído anos atrás. Nunca me passou pela cabeça, quando adolescente, que tal problema era um problema filosófico que tinha dado muita dor de cabeça aos grandes filósofos – muitos, até, perderam a sua por ter proposto certas soluções. Isso me mostrou que a Filosofia está sempre mais perto das pessoas do que elas imaginam. Filosofamos espontaneamente porque o questionamento é conatural ao ser humano, a não ser que tal espontaneidade seja esmagada por ambientes pouco propícios a criatividade e a liberdade de pensamento. 

Desta maneira, e para responder à questão desta seção, poderíamos dizer que, como os bons e os maus costumes, a filosofia começa, ou não, na infância, se houver um ambiente propício para o normal e sadio desenvolvimento espiritual e intelectual das crianças. Elas que, aliás, mostram uma curiosidade filosófica e científica surpreendentes. É pena que a família, ou a escola, as frustrem. 

Disso resulta algo que, para muitos leitores, será um alívio. Na verdade, não é por termos lido que podemos ser filósofos, mas por estarmos acostumados a pensar criticamente. 

PALÁCIOS, Gonçalo Armijos. O começo do filosofar. In: De como fazer Filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1997. cap. 3, p. 29-35.

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